29 de jan. de 2012

Seguro Garantia-Bode

SEGURO GARANTIA-BODE

Clovis Guimarães Filho1


Os governos, federal, estaduais e municipais, pagaram seguro garantia-safra a mais de 700 mil agricultores familiares do semiárido na safra 2010-2011 e, por incrível que pareça, ainda fazem ruidosa publicidade dessa ação que pode ser considerada como um prêmio a um insucesso planejado. O foco central dos debates é equivocado. Não se discute a produção e o que precisa ser feito para incrementá-la. Praticamente não se vê nos noticiários publicidade sobre tonelagens recordes, ou mesmo normais, de milho e feijão produzidas, apenas quantas mil famílias foram “beneficiadas” com os programas de distribuição de sementes ou com o pagamento do seguro. Bastante compreensível a omissão, considerando que os cultivos de milho e do feijão no semiárido só têm chance de sucesso em três de cada dez anos de cultivo. Evidentemente que, face a sua heterogeneidade natural, com pelo menos dez unidades diferenciadas de paisagem, existem zonas do semiárido onde essas chances são bem maiores (36% do total, segundo o estudo). O problema é que o seguro garantia-safra é aplicado para qualquer área do semiárido, sem critério claro de zoneamento e na grande maioria dos cultivos, nas zonas mais secas, o agricultor familiar não conta com qualquer apoio técnico capaz de, pelo menos, fazê-lo associar alguma técnica de preparo do solo para captar e armazenar um pouco mais da pouca água que cai, nem mesmo uma simples curva de nível.

Um estudo da Embrapa indica que essas culturas são de muito baixa viabilidade em mais da metade da área do semiárido, aquela correspondente às áreas consideradas no estudo como de “baixa oferta ambiental”. Somente no estado do Piauí o governo já pagou mais de 120 milhões de reais aos agricultores por perdas na safra no período 2003 a 2010. Dos mais de 68 mil agricultores inscritos no Garantia Safra 2010-2011, apenas 338 (meio por cento) conseguiram salvar mais de 50% da produção esperada. Pode-se afirmar que, de certa forma, eles foram induzidos a plantar o que não deveriam plantar. Em Pernambuco, dos 66 municípios inscritos, 52 comunicaram perdas ao MDA. Acompanhamos, no último ano agrícola, no Sertão do São Francisco, 41 propriedades que receberam sementes milho e feijão e horas de trator para cultivo em 13 localidades. O resultado: campos de milho com produtividade média de 1,32 saco/hectare e de feijão com produtividade média de 4,78 sacos/hectare. Os pluviômetros dessas localidades registraram chuvas que variaram de 320 a 647 mm. Os produtores não receberam assistência técnica durante o ciclo das culturas.

Por que a persistência com este programa que estimula o cultivo do que não dá para pagar o seguro porque não deu? Por que não limitam o seguro às áreas onde essas colheitas sejam agronomicamente mais viáveis e nas áreas mais secas implantam um seguro mais coerente com aquilo que realmente é estratégico para a vida do produtor que nelas habita? Os presumidos danos causados pela perda da safra de milho e feijão já são historicamente absorvidos pelo produtor familiar das zonas mais secas, pelo simples fato de que os produtos mais básicos para sua sobrevivência são o caprino, o ovino, o mel, a galinha e o umbu. Esses são, sim, exemplos de produtos que efetivamente garantem a sobrevivência, e, se bem orientados, a acumulação dos meios de produção das comunidades do semiárido. Seria um programa que poderia genericamente se chamar seguro “garantia-bode” ou “seguro-bode”, o que sintetiza aquilo que realmente o produtor familiar precisa, pois quando a falta de chuvas induz uma escassez desses produtos, o produtor e sua família têm realmente comprometida a sua sobrevivência. Todo o mundo sabe do valor do bode como o principal fator de fixação do caatingueiro, mas, até hoje, nenhum programa massivo de formação de reservas de forragem para o período seco foi implementado. Alguém sabe qual foi o estoque estratégico, em toneladas de silagem ou de feno ou de palma ou de palhadas, montado pelos estados do Nordeste para enfrentar o período seco de 2011? E para 2012, quais são as metas previstas? Só existem planos para tentar atenuar os resultados das catástrofes, nenhum para realmente prevení-las.

Parece que a ocorrência de uma seca sempre nos pega de surpresa. O Plano Safra da Agricultura Familiar 2011-2012 do MDA não inclui, para o semiárido, nenhuma ação estratégica de prevenção de seca ou de defesa desses produtos. Quem sabe se não poderíamos incluir um “seguro-palma” para casos de ataque de cochonilha? Na contra-mão, os programas estaduais de “melhoramento genético dos rebanhos” continuam cada vez mais fortes, agravando ainda mais o problema da criação nos períodos de escassez, já que, sem ações simultâneas de melhoria da alimentação e manejo, tais programas contribuem apenas para reduzir o caráter rusticidade dos rebanhos miscigenados, tornando-os bem mais vulneráveis às estiagens. Sem falar na contínua erosão genética que descaracteriza o tipo naturalizado do caprino da caatinga com inegável potencial de conquistar, se bem trabalhado, os mais exigentes mercados. Agora estão chegando com os chips eletrônicos, importantes também, mas de resultados pífios se, antes, não for resolvido o problema da alimentação dos rebanhos. As armas efetivamente estratégicas contra as secas devem residir em planos microrregionais ou territoriais articulados das secretarias estaduais de agricultura com os municípios e as organizações de produtores, tendo por base o reconhecimento das secas como fatores normais de produção e não como anormalidades.

O continuísmo de programas como a distribuição indiscriminada de sementes de milho e feijão, de animais “melhoradores”, de carros-pipa, de cestas básicas, de bolsas isso e bolsas aquilo apenas sugere a incompetência dos governos e principalmente, o completo desconhecimento do potencial em recursos naturais e humanos do semiárido para seguir um caminho mais compatível com as demandas de suas populações. Tive oportunidade de ver na seca província de Queensland, Austrália, programas de apoio a pecuaristas que poderiam ser adaptados para o nosso semiárido. Decretada formalmente uma situação de calamidade com a seca, o seguro com que contam os produtores daquela região é, sem qualquer burocracia, a pronta disponibilização de ração, com desconto de 50%, para salvar seus rebanhos. Não o rebanho inteiro, mas preservar apenas seu núcleo de matrizes e novilhas de reposição, permitindo ao produtor a manutenção de um capital mínimo que lhe permita reiniciar a atividade, uma vez passado o período crítico. Uma estratégia de manejo técnico e financeiro da exploração nesse período é posta em prática, começando com a redução do tamanho do rebanho.

Fica clara a importância da organização do produtor, antes de qualquer coisa. Podemos fazer algo parecido adaptado às nossas especificidades? Temos alguma política pública abrangente que efetivamente priorize a organização social e profissional do produtor familiar ou apenas algumas iniciativas dispersas? O nosso desafio é adequar as inovações e as políticas públicas às circunstâncias e potencialidades dos produtores de base familiar do semiárido, tomando em consideração suas instituições, sua racionalidade, seu limitado acesso a insumos e a assistência técnica e os recursos disponíveis na propriedade. No semiárido, como em qualquer outra região, cada ação ou etapa desse trabalho, inclusive a introdução de novas tecnologias, deve ter seu tempo certo e seu espaço adequado para execução. Em suma, não podemos continuar alterando o ecossistema para adaptar pseudo-soluções exógenas. As verdadeiras soluções estão aí, bem a nossa frente. Só precisamos aprender a enxergá-las. Urgentemente, já que a caatinga está sendo dizimada a um ritmo próximo aos 300 mil hectares anuais.

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1 Médico-Veterinário, M.Sc. em Animal Science, ex-pesquisador da Embrapa, consultor do Projeto Bioma Caatinga-BA





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