4 de dez. de 2011

O CAPRINO NO NORDESTE BAIANO



Texto da década de 70 deixado pelo saudoso professor Eutrópio Luiz Brandão, engenheiro-agrônomo e professor de Zootecnia da antiga Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco, de Juazeiro-BA. Embora um pouco extensa, a narrativa é por demais interessante, revelando, até com um pouco de poesia, seu profundo conhecimento do comportamento dos caprinos e do cotidiano do caprinocultor nas condições mais extensivas de caatinga



Conhecendo os hábitos e preferências do pastejo de caprinos, nosso criador, para formar uma fazenda de exploração desse animal, escolhe no centro da caatinga o local mais encostado a uma aguada, ou então faz cuidadosa sondagem das possibilidades de abrir um tanque que tenha boa entrada de água, ou um paredão através de um boqueirão apertado, entre dois montes, que se espraiando para o montante venha formar um bojo bem amplo para represar água a grande distância. Quanto mais próxima ao centro da caatinga, melhor será a escolha da fazenda, em contraste com a criação de ovinos que não tem muita afinidade pelos “troncados” (1) o sim pelos “taboleiros” (2) e” abertas “ (3). Por causa dessa diferença de hábitos de pastar entre ovinos e caprinos, o criador, que na zona fatalmente criará as duas espécies, culmina pela fundação da fazenda “no beiço” (4) da caatinga.



São maiores as probabilidades de êxito se houver “água franca” (5). Mas, a escolha da caatinga tem tanta influencia quanto a água, pois é dela que vai depender o forrageamento dos animais.



Numa caatinga boa, encontram se inúmeras forrageiras. sobre tudo faveleira (Cnidoscolus phyllacanthus). quebra-facão (Calliandra – tweedili), marmeleiro (Maproumea brasiliensis), carqueijo (Baccaris sp), umbuzeiro (Spondias tuberosa) e umburana-de-cambão (Bursera ceptophlocos). Essas árvores, além de fornecerem folhas verdes no período das chuvas, produzem durante a estiagem (com algumas exceções) abundantes folhas maduras e secas que o caprino consome com avidez, engordando até.



O umbuzeiro, por exemplo, no período da frutificação, é uma maravilha para os caprinos. Esses animais quando são libertados dos chiqueiros, pela manhã, vão todos correndo e berrando em direção de suas veredas prediletas, a procura dos umbus saborosos, que durante a noite tenham caído, visitando costumeiramente todos os umbuzeiros das cercanias, até completar o ciclo de pastejo do dia. Aliás, o caprino é um animal de hábitos certos: todos os dias, aquelas mesmas horas, como que orientado pelo relógio da natureza, ele está naquele determinado local, passando por “lambedores” (6), “trançados” (7) “abertas” “esponjadouros” (7), e etc. Até chegar aos “Amalhadouros” (8) ao crepúsculo, para repousar, sob o acompanhamento do constante galanteio dos “pais de chiqueiros” (9).



No ano de muito umbu ano, boa produção. As cabras “caem o cabelo,” afinam o “sangue” (10) e é profusa a cantilena dos bodes, em todas as direções, cortejando as fêmeas, revigoradas pela doçura do saboroso fruto. O folclore nordestino também disso tem se utilizado, enriquecendo muito apropriadamente suas interessantes páginas. Convém ressaltar, a propósito, que bode em tempo de seca não gosta de cabras. Não é muito raro verem-se os magotes de “pai de chiqueiro” reunidos em associações gregárias, divorciados das cabras, como que em quarentena, de “pressão arriada”, sentindo todos a mesma causa do desconforto e da desnutrição, procurando readquirir a vitalidade perdida. Quando, porém “levam água no lombo” e “lavam o piolho” logo nas primeiras chuvas, desmancham a sociedade e “mandam brasa”... Naqueles “pés de alto” (11) no beiço da caatinga, á tardinha, perto dos “amalhadores”, pelo constante bodejar dos “pais de chiqueiros” nas suas aventuras amorosas, é “de não se escutar chocalho”...



Incorporados também ao patrimônio forrageiro da região, em que pense o interesse do criatório dos caprinos, estão as espécies características das margens dos riachos efêmeros. Aquelas que predominam são caraibeiras (Tabebuia caraiba), juazeiro (Zizyphus juazeiro) e quixabeira (Bumelia sertorum, Mart).



Quem viaja pelo município de Curaçá, através dos distritos de Riacho de Jaquinicó, Patamuté e Barro Vermelho, da caminhada das elevações, descortina ao longe, em plena seca, a sinuosidade dos riachos daquela região alcatifados de árvores seculares e vicejantes, e as copas floridas das caraibeiras, pela primavera, oferecem aos olhos do viandante fatigado, uma paisagem deslumbrante, assemelhando a uma gigantesca serpente que sustentasse ao longo do seu dorso um dos jardins suspensos de Babilônia. E esta caraibeira embelezante, além do amarelo vivo de suas flores em pleno mês de setembro, oferece posteriormente os seus frutos, ainda verdes, derrubados por periquitos e maracanãs selvagens, para o deleite do nosso caprino.



O juazeiro, presente dos céus aos sertões nordestinos, com a dádiva de sua verde e constante ramagem, sensibiliza o nosso olfato com o perfume de suas flores. Aos seus frutos o caprino tem tanta avidez que muita vezes expõe os criadores a prejuízos e sérios perigos. É quando durante as chuvas, os riachos transbordam de suas margens coincidindo com o período de frutificação do juazeiro. Os caprinos, atraídos pela sedução da fruta saborosa, correm doidamente para as arvores e ali passam a noite. Quando “alta madrugada” cai um pé d’água (12) nas cabeceiras dos riachos, esses crescem rápida e assustadoramente, levando de roldão o que encontram em sua passagem. Então criador, sem mais poder dormir, ouvindo o brado de socorro dos seus animais, decide enfrentar o perigo. E debaixo de um aguaceiro de molhar ate os ossos, com uma pele de bode curtida na cabeça, corre para salvar o seu rebanho que já se encontra ilhado nos pontos mais altos em que se situam os juazeiros. Mas as águas continuam a crescer e os cabritinhos danam-se a berrar fazendo coro com os demais companheiros. Alcançados pela “cheia” (13) lá vem descendo, barrada na “vela d’água” (14), um e depois outro e mais outro... E o dono, esquecido do perigo, desejoso apenas de salvar seus animais, ”lasca o peito n’água” e cauteloso, já no fundo, acerca-se do bichinho e nadando com ele sempre ao lado, encosta aqui descansa ali, até se por a salvo. Na escuridão da noite, nada enxergando, usando o sentido da direção, orienta-se pelo berro da criação e pela luz clara e intermitente dos relâmpagos. E vai assim ate salvar a ultima cabeça, se puder. E quando, às vezes, não pode, as vê morrer sem jeito a dar...



Escolhido o local da fazenda, de acordo com o binômio, água e forragem, abundantes constroem-se a casa de vaqueiro e os chiqueiros. A casa sempre feita de “sopapo”, raramente rebocada e atijolada com uma sala e duas camarinhas, alpendre na frente e cozinha feita por fora, sem instalações sanitárias (para esse mister continuam usando a caatinga). A frente é virada para o nascente a fim de que tenha sombra a tarde.



Os chiqueiros, grandes e amplos; quando não ligados ao oitão da casa, são mais afastados (caprinos à direita e ovinos á esquerda). São divididos em três partes: uma para segurar os que estão dentro, outra para receber os que chegam e terceira, menorzinha, para apartar os animais alheios e enchiqueirar as marrãs em lactação. À noite, nesta parte, há sempre uma casinha de palha em duas águas para sombreamento dos cabritos nos dias de calor.



Quanto às aguadas, podem ser de três espécies: “água franca”, ”rebaixo” e de “bogó”. “Água franca” é caracterizada pela liberdade franca de ali beberem os animais de todas as fazendas, quando é um “olho d’água” (15) ou “poço” que nunca seca. Cacimba de “rebaixo”, como o nome indica é a que dispõe de uma rampa de acesso ao poço, por onde descem os animais para beber a água onde esta minando, ai protegidos por um caniço ou cerca, para não caírem dentro do poço. Estes tipos de cacimbas sempre são localizados no leito de riacho e cercados ao redor para evitar a queda de algum animal. Existe o inconveniente de toda vez que o riacho enche a cacimba ser entulhada e as cercas carregadas pela força da correnteza, causando o prejuízo de limpar e cercar todos os anos até mais de uma vez, conforme a constância das chuvas. A cacimba de “bogó” é a mais comum: a água sai tirada por uma lata, puxada por corda que é enrolada em um carretel e é depositada em bebedouro de 5m de comprimento por 1m de largura, dividido num terço do seu comprimento por uma grade de varas que impede o animal de entrar e sujar a água, utilizando só o espaço necessário para manter a cabeça com uns 20 cm de altura É construção de pedras ou alvenaria, quando não grandes cochos de madeira.



Depois de todas as instalações prontas, começam a chegar os animais. Então são submetidos a intenso pastoreiamento, a fim de acostumá-los ao local. Conforme a quantidade de animais, 2 ou 3 pessoas pastoreiam, levando-os todos os dias para vários pontos, derrubando galho de juazeiros, quixabeiras, imburanas de cambão, etc., para eles irem aprendendo aqueles locais de comida, assim como de bebida.



O número de caprinos varia com as posses do “amo” (16). Podem ser 50, 100 ou mais cabeças. Sempre são escolhidos animais novos, marrãs, marrazinhas e 2 ou 3 “pais de chiqueiro”, de bom porte, conforme o número de fêmeas.



Após oito ou dez dias de consecutivo pastoreiamento, já se começa a soltar a criação, depois de botar chocalho nas mansas, para arrebanhar os outros e nas mais ariscas, para indicar a presença quando ao longe. É que os caprinos, apesar de terem hábitos normais, nunca se acostumam a pastar juntos e numa só direção. O magote de “lombo preto” fica pasteiro no “alto das queimadas”; o magote da “Oma” acostuma-se a pastar na “caatinga da moça branca” e assim por diante, por meio de topônimos, vão-se determinando os diferentes pastos dos caprinos. O criador sempre prefere um determinado local de melhor caatinga. É mais fácil do grupo ser arrebanhado por uma só pessoa porque, quanto maior a dispersão dos grupos, tanto mais gente precisa para o serviço, a não ser que nunca os reúnam todos no chiqueiro. Isso, que é comum, estabelece 4 tipos de caprinos pelos seus hábitos de pastar: as “borralheiras”, as “mateiras”, as “roceiras” ou “ladronas” e as “brabas”.



As “borralheiras”, procedentes de cabritos enjeitados, que se acostumaram a casa e de pastar ali por perto, entrando e saindo de lá a toda hora, sem se afastarem muito. As “mateiras”, também mansas, vivem de preferência nas caatingas, de dois em dois dias, conforme o calor, e são obedientes ao grito do vaqueiro, espirrando de todos os lados, á tardinha, em direção ao chiqueiro, quando aquelas vão campear. As “roceiras” ou “ladronas” são também, quase sempre, enjeitadas que se acostumam a pastar nas roças alheias. É um perigo essas cabras depois de se tornarem “vezeiras” (17), são poucas cercas que as detém. O pior é que viciam as demais que pastam nas imediações, pelo convite que parece fazer quando passam badalando os seus chocalhos. E, ali nas roças, muitas delas dão cria a vigorosos cabritos e vão aumentando o rebanho não obstante as perseguições, correndo sempre os riscos das enchentes dos riachos que vezes sem contas causam-lhe grandes mortandades. São notáveis equilibristas, procurando todo o jeito de entrar nas roças, custe o que custar, muitas vezes com o sacrifício de um pedaço de couro do próprio corpo, ao esgueirarem-se nas afiadas farpas do arame ou nas pontas das varas, em passagens apertadas das cercas que protegem as plantações. Nos subúrbios das cidades, as cercas são uma atração para os caprinos verdadeiramente ladrões. Cerca de arame farpado de até 10 fios bem esticados, vibrando como corda de viola, nem sempre bastam para deter as endiabradas. Um grampo despregado pela mão impiedosa do tempo ou pelos desocupados caçadores de passarinho, um mourão que apodreça o pé, um fio de arame que folgue ou que solte, lá surgem as cabras “ladronas” invadindo impiedosamente as roças, estragando as lavouras e acabando com tudo que for encontrado. Cada região, de acordo com as condições do meio, tem o seu tipo de cerca. Para os caprinos, nos arredores das cidades, a melhor a W “tesoura” ou de “faxina”, quando bem aprumadas. O animal não encontrando onde se apoiar ou meter a cabeça, passa em sua visita diária pelo pé de cerca, procurando e espreitando aqui e ali algum local sem garantia até sua desilusão. Mesmo assim, todos os dias, ao se libertarem do chiqueiro, vão correndo, pulando e berrando até os locais costumeiros da invasão, fazendo antes uma visitinha aos pés de cercas para não esquecer. Não fora o alto preço, uma tela de arame grosso tipo “page”, 12x58, com 1,50m de altura mínima, seria a solução ideal para a contenção do caprino, pois além da ausência das farpas não desclassificar o couro, não tem as desvantagens das cercas de faxina. É menos custosa a mão-de-obra para construir, é mais resistente, dispensa grande quantidade de grampos, e é muito mais eficiente. Finalmente as cabras “brabas” são as que foram amansadas, que vieram ao chiqueiro para serem “assinadas” (17-a) quando ainda cabritas de “orelha inteira” (18) ou as que foram assinaladas no mato mesmo, pegadas quando necessário a “dente de cachorro” (19) ou a “pata de cavalo” (20). São animais que nascidos no mato conseguiram sobreviver a “mundiça” (21) no umbigo, na boca ou em outras partes do corpo. Que na exuberância profusão de cardos, cactos, ervas, malvas e capins, onde seus pais se esconderam, vão apanhando a “vareja” (22) e sendo devoradas pelos bichos, salvo as vezes pelas mão cuidadosas dos vaqueiros ou pela própria sorte que os reservou como eleitos da seleção natural. Entre os animais seus predadores estão onça, gato, raposa, urubus, etc. É o carcará o seu maior algoz, quando não encontra o que comer e descobre um cabritinho recém nascido, lança-se a ele, arrancando-lhes os olhos e não satisfeito, quando o bichinho berra, corta-lhe a língua, mesmo debaixo dos protestos e chifradas das cabras mães e assim, emudecido, vai o carcará consumindo-lhes os despojes ainda vivos.



O caprino bravo é de selvageria tamanha que, somente com muita sutileza, é possível acercar-se dele, assim mesmo contra o vento, quando distraído a pastar, ou dependurado nos umbuzeiros a comer, ou ainda, se surpreendidos a dormir. Quando ele percebe a presença de pessoas, parte aos pulos por cima de tudo sem respeitar garranchos e espinhos. O meio ambiente tudo modela: caprinos bravos pouco bebem água e só o fazem abundantemente quando chove ou pressionados pelo excesso de calor. São raros os que chegam até a fonte “tocados de sede” (22-a) “destriziados” (23), esquios, longilíneos, quando o fazem vem desconfiados “tomando chegada” (24), pé ante pé, assustando-se de tudo, ate por a boca n’água. Sorvem o liquido em grandes goles e nem bem acaba de saciar a sede, já estão partindo em desenfreada carreira de volta a caatinga. É esse o momento mais propicio para capturá-los, quando não se faça “a dente de cachorro” ou “pata de cavalo”. O pessoal escondido, sempre contra o vento, espera o animal entrar na cacimba e passando alguns segundos logo que bebe, toma a porteira; de barriga cheia, sem mais aquela destreza, pode ser contigo. Aqueles cuja selvageria não permite vir a fonte dessedentam-se nas forrageiras xerófilas, sobre tudo no “xique-xique” (Pilocereus goumellei, Weber), “coroa de frade” (Melocactus bahlensis, werderm) e caroá (Neoglezievia variegata, Mez). Algumas cabras mateiras e as brabas principalmente têm os cornos estragados dessa operação e de muitos deles só lhe restam “cotocos” (25). O caprino sedento vai dando chifrada no cacto até abrir uma brecha por onde começa a saciar sua sede. Por todas essas causas ou apesar delas é o caprino bravio e mais sadio das fazendas criadoras, pelos belos e lustrosos, dão mais carne e mais leite nos períodos de chuvas e os cabritos, quando escapam dos seus inimigos naturais, crescem muito e dão pelo mais depressa



Acostumados os animais, os vaqueiros limitam-se a trazer para o chiqueiro, todos os dias a fim de ficarem ‘’chiqueiras’’, quando em vez, se dar um ‘’campo’’ (25) nas mateiras. Chegando o tempo de parição (duas vezes ao ano - abril, maio e durante o mês de agosto) o vaqueiro trabalha mais. Todas as tardes ele veste as ‘’perneiras’’ (26), põe o ‘’guarda peito’’ (27) e mete- se na caatinga, a pé, em busca das cabras paridas. Presumindo encontrar cabritinhos novos que não possam caminhar acompanhando as mães, levam a tiracolo um embornal (também conhecido como capanga ou ale), onde vai botando os recém nascidos, tocando as cabras na frente ou sendo por elas acompanhado. As cabras mateiras e brabas, para não terem as sua crias comidas pela “mundiça” e animais predadores, devem ser previamente campeadas e contidas em cercados próprios (maternidade), parindo todas sob a vista do vaqueiro que mantém grande vigilância aos urubus e carcarás, na hora do parto e sobre as raposas e gatos, posteriormente.



Logo que o recém nascido está enxuto, é trazido para o chiqueirinho onde outros já se encontram. Ali, nos dias de forte calor, está protegido por uma cobertura de palha. Nessa ocasião, quase todos os caprinos da criação ali se encontram. Cada cabra de chocalho reúne um magote em torno de si. Mesmo as solteiras obedecem ao chocalho, razão porque todas as “mães de magote” (28) devem possuir um chocalho para denunciar sua presença, mesmo longe, aos ouvidos delicados do vaqueiro. Este pelo tom do chocalho no centro da caatinga distingue o animal que ali esta pastando e pode ir buscá-lo. Além do chocalho, é também posto um “cambão” (29) nos caprinos mateiros e brabos, a fim de terem sua carreira limitada no momento de pega. É que existem caprinos velhacos, que aprendem a não bater o chocalho, mesmo a pequena distancia do vaqueiro, ficam estáticas, silenciosas, muitas vezes olhando para ele, que grita e não denuncia a própria presença por entre a maravalha.



Contidos e reunidos todos os animais, nessa época de parição, brilha a centelha de alegria no coração do criador. Faz gosto de ver 100, 300, 500 cabritos novos subindo uns nos outros, nas pedras e troncos inclinados, pulando e “cabriolando” como doidos pela “malhada” a fora, cada qual mais arisco, de pelagens e caracteres diferentes, a demonstrar a profusão de sangue ali misturado, e como que a clamar por uma seleção aprimorada dentro do ambiente que os rodeia.



Á tarde, logo cedo, começa o be-be-be das matrizes para o aleitamento dos filhos, acentuando-se cada vez mais, a medida que se aproxima a noite, quando então se deleitam as “perdidas” (28-a) e aleitam-se os “enjeitados” (29). Já dentro da noite, procede-se ao aleitamento (raramente) e ao enchiqueiramento, quando no dia seguinte se continua com o aleitamento dos “enjeitados” para beneficio das perdidas que, assim não correram o risco de mamites pelo represamento do úbere. É também então que se procede a exame dos umbigos dos cabritos na suposição da existência de varejeira. “Deleita também para o consumo” da fazenda, principalmente, para o fabrico de “queijo de leite de cabra”.



Logo que expira o mês de maio, procede-se a partilha. Nos chiqueiros pequenos são separados todos os cabritos e marrãos, machos e fêmeas. De cada quatro cabritos “assinados” um quarto é do vaqueiro (o que eles chamam de “levantar a sorte”), podendo ser um cabritinho, uma marrã ou um pai de chiqueiro, contando que esteja dentro da ordem de tamanho dos três primeiros assinalados. Quando se deseja despedir um vaqueiro é uso coreto dá a partilha em pleno mês de agosto, depois da segunda parição, presumindo-se que depois dessa ocasião não haverá mais caprinos para dar cria.



Cada fazenda criadora tem seu sinal marca, chamado de “mourão da fazenda” que deve ser completamente diferente dos sinais das outras. Quando a fazenda possui muitos herdeiros, cada um tem o seu sinal, porem o “mourão” na orelha direita é sagrado e não deve ser imitado por nenhum, se tal suceder, costuma “bater as porteiras da fazenda” a menos que seja descoberta coincidência muito cedo.



As marcas nas orelhas, os sinais são variadíssimos. Dela podemos lembrar: mourão, canzil, forquilha e boca de lagarto, por baixo canzil, forquilha e troncha; forquilha, canzil e dente; bico de candeeiro e mossa. Da profusão de sinais, de que demos pequeníssimo exemplo, nem um se confunde com o outro. O sinal é a marca de identificação. Não se ferra a criação, a não ser as compradas para açougue, quando em viagem. Nos ovinos algumas vezes corta-se o rabo além do sinal para serem identificados de longe. Assinalados os cabritos, logo que secam os cortes do sinal, libertam-se os animais ficando o vaqueiro com o cuidado de todas as tardes ir “gritá-los” para o chiqueiro, a fim de não se tornarem arredios.



GLOSSÁRIO





1)TRANÇADOS – locais de vegetação mais densa no meio da caatinga.



2)TABULEIRO – trecho de campo com poucas arvores e arbustos.



3)ABERTAS – pequenas clareiras que se separam por tufos de vegetação mais alta e densa, e onde vegetam arbustos de pequeno porte, sobretudo malvas de varias espécies cujas flores são muito apreciadas pelos ovinos.



4)NO BEIÇO DA CAATINGA – a entrada da caatinga



5)ÁGUA FRANCA – fonte ou minadouro fraqueado aos animais de todas as fazendas das cercanias.



6)LAMBEDOUROS – local onde os terrenos são salitrosos e os animais por carência de sal, vão lamber a terra.



7)ESPONJADOUROS – locais de terras mais soltas, onde os animais costumam espoja-se.



8)AMALHADOUROS – locais em que os animais costumam reunir-se a tardinha para dormir.



9)PAIS DE CHIQUEIRO – reprodutores caprinos machos.



10)AFINAM O SANGUE – engordam.



11)PÉS DE ALTO – pé de morro, elevação.



12)PE D’ÁGUA – enchente fluvial, inundação.



13)CHEIA – forte massa de chuva.



14)VEIA D’ ÁGUA – crista das águas a flutuar.



15)OLHO D’ÁGUA – nascente forte.



16)AMO – dono, patrão.



17)VEZEIRAS – viciados.



18)ORELHA INTEIRA – sem marcas.



19)A DENTE DE CACHORRO – caça com auxilio de cães.



20)A PATA DE CAVALO – a busca dos animais em montaria a cavalo.



21)MUNDIÇA – ferida provocada por mosca varejeira.



22)VAREJA – varejeira



23)DESTRIZIADAS – magras, famélicas, sentidas, sedentas.



24)TOMANDO CHEGADA –aproximando-se cautelosamente.



25)DAR CAMPO – pastorear e trazer para o chiqueiro.



26)PERNEIRA –calça de couro.



27)GUARDA PEITO – espécie de colete de couro para proteger o tórax.



28)MÃE DE MAGOTE – cabras madrinhas, lideres do grupo , as que asa demais atendem.



28-a)PERDIDAS - cabras que deixaram perde o filho.



29)CAMBÃO – pedaço de madeira do tronco de uma árvore de tamanho e peso relativo ao porte do animal, que pendura no pescoço dificultando-lhe o movimento.



30)MARRÕES – cabritos maiores.



30-a)CAMARINHAS - quartos.

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