CAPRINO-OVINOCULTURA, UMA ALTERNATIVA MAL APROVEITADA
As desculpas para os fracassos dessas tentativas são centradas na ïnviabilidade ou não competitividade dessas unidades num mercado globalizado, esquecendo-se das falhas grosseiras de concepção e de operacionalização desses programas (Polonordeste, PAPP, etc). Na verdade, tais unidades, para muitos especialistas, não seriam inviáveis, foram, sim, inviabilizadas, ao longo do tempo, por políticas que não levaram em consideração fatores amplamente conhecidos como um ambiente econômico e sócio-institucional adverso, uma incompreensão da lógica interna de manejo das unidades produtivas, a heterogeneidade das unidades incluídas nos projetos de desenvolvimento, uma concepção assistencialista da política para esse setor e, principalmente, uma setorização estreita ou excessiva, das medidas de política adotadas (onde estão os programas rurais das secretarias de educação e de indústria e comércio?).
Programas teimosa e repetidamente planejados e operados por pessoas que nunca viram um bode vivo na vida, salvo em exposições, inclusive com a incompetência e a cumplicidade de organismos internacionais, só fizeram agravar as consequências sociais, econômicas, culturais e ecológicas de um êxodo rural cada vez mais desenfreado. Os limites da revolução verde já foram muito bem delineados. A agricultura não pode mais ser entendida com a simples função de produzir alimentos. Se assim fosse, não haveria a contradição no mundo capitalista de coexistirem uma massa humana que passa fome e grandes estoques de alimentos, principalmente na Europa e Estados Unidos, sem compradores. A nova revolução agrícola, segundo Conway, deve objetivar, em síntese, a segurança alimentar, a criação de renda e de emprego e a conservação dos recursos naturais e do meio ambiente.
Tomemos, como exemplo, o caprino e o ovino, produtos típicos do nosso semi-árido. A eficiência de produção nestas atividades é sumamente baixa, caracterizando uma economia de subsistência. Boa parte da produção se destina ao autoconsumo familiar e o excedente é vendido através de cadeias de intermediação em que o produtor, ao invés do animal, é o explorado. Entre os fatores responsáveis pelo baixo nível de preços derivados destacam-se as grandes distancias aos centros de maior consumo, a falta de informação do valor dos produtos, a atomização da oferta, a descapitalização, a modalidade de venda e a intermediação nas cadeias de comercialização.
A caprino-ovinocultura tem resistido bravamente a uma série de programas de apoio, caracterizados, quase sempre, pelo objetivo isolado de melhorar o padrão genético dos rebanhos, esquecendo-se da lição mais elementar da genética que diz ser o fenotipo produto da interação genótipo + ambiente. Alteram o ambiente para adaptá-lo aos animais importados e não o contrário, como o raciocínio mais elementar indicaria. Dois erros são fundamentais nesses programas:
. limitam-se ao segmento criação (dentro da porteira) dentro da cadeia produtiva;
. limitam-se ao melhoramento genético, inseminação artificial ou à outra especialidade dentro do segmento criação.
Trabalhos de órgãos de pesquisa, bem como, a experiência de muitos produtores, mostram ser possível, em rebanhos comuns, mestiços, aumentar a produção de carne caprina ou ovina comercializável por unidade de área, em mais de 100% ao ano, simplesmente com a adoção de técnicas simplificadas de alimentação e manejo, sem maiores alterações no ambiente natural. De muito pouco adianta, contudo, aumentar o nível de produtividade biológica dos rebanhos, através da introdução de inovações tecnológicas, se, o caprino-ovinocultor continua a comprar seus insumos de uma maneira individual e a vender o produto primário, sem nenhuma agregação de valor, em época inoportuna e a intermediários. O único resultado, na prática, é o aumento dos lucros destes últimos.
As interações dentro da unidade e desta com o ambiente externo não são consideradas. Ou seja, não existem, ou nunca existiram, para o semi-árido, programas realmente de desenvolvimento rural em que o desenvolvimento integrado das comunidades constitua o objetivo final a ser atingido e em que as formas associativas de organização, compra, produção, transformação e venda constituam a estratégia básica de ação.
Já tivemos no semi-árido algumas tentativas com similar enfoque, contudo foram experiências ainda muito tímidas, de dimensão excessivamente micro, específicas e, quase sempre, desarticuladas no tempo e no espaço. Para os cerca de 90 milhões de hectares de semi-árido não irrigável, as melhores alternativas residem, evidentemente, na valorização de suas potencialidades naturais, cujo conhecimento ainda deixa muito a desejar. Dentro do que já se conhece, a caprino-ovinocultura é, sem sombra de dúvida, um espaço a ser racionalmente trabalhado. Para esta atividade a integração dos pequenos produtores com o setor agroindustrial e distribuidor pode ser uma forma alternativa de garantir a reprodução de suas unidades de produção, dentro de um processo de revalorização do espaço rural Incluir a agroindústria na tarefa de incorporar os caprino-ovinocultores ao progresso tecnológico é uma opção ainda pouco explorada no Nordeste semi-árido, mesmo no caso dos curtumes, hoje trabalhando com capacidade ociosa em função, também, de décadas de relações predatórias com os provedores de sua matéria-prima.
O potencial competitivo da articulação entre a agricultura familiar, no caso os caprino-ovinocultores, com a agroindústria, se deve ao fato de, pelas suas características, o custo de induzir a produção de um determinado bem ser inferior nessas unidades que em unidades do tipo empresarial. Nos casos de caprinos e ovinos, existe um parque industrial adaptável em formação, um potencial de agregação de valor e um mercado aberto com imenso potencial de expansão, desde que lhe seja ofertado um produto de qualidade, o que não significa, com certeza, o nosso conhecido “bode assado”.
São várias as possibilidades de produção de derivados da carne e de peles na caprino-ovinocultura. Seus produtos apresentam condições de entrar nos grandes mercados urbanos e competir em condições de igualdade, e até com vantagens, em alguns casos, com os similares de outras espécies. Alguns terão que, antes, se consolidarem como commodities. Outros, podem já conquistar seus nichos de mercado, como especialidades. Não é necessário repetir as qualidades do leite da cabra e de seus derivados. Para seus queijos, está de braços abertos uma parceria com a promissora vitivinicultura turística do vale do São Francisco. Para a carne, um trabalho bem feito de tipificação do animal e do produto buscando sua diferenciação e certificação de origem, começando pela troca do preconceituoso termo “bode” por “cabrito” e divulgando suas excelentes características de sabor e valor nutritivo, certamente abriria espaço nos mercados dos grandes centros urbanos para se consolidar como alternativa de consumo aos demais tipos de carne.
Séculos de adaptação ao ambiente adverso da caatinga, deram à pele do nosso caprino e do nosso ovino características especiais que as fizeram produtos de exportação, embora programas irracionais de distribuição de reprodutores “melhorados” tenham posto em risco e até afetado a preservação dessas qualidades. O esterco dessas espécies continua sendo desperdiçado ou sub-utilizado, enquanto a agricultura irrigada do vale do São Francisco paga caro pelo produto. Apenas no eixo Juazeiro-Petrolina, a demanda por esterco é estimada em, pelo menos, 400.000 toneladas anuais.
Para que todas essas potencialidades possam materializar-se, a produção caprina e ovina gerada deve cumprir com os requisitos de qualidade, homogeneidade e regularidade de oferta que o mercado exige. Estas características não se dão espontaneamente no setor de agricultura familiar, já que supõem um processo de organização e de capacitação gerencial desses produtores, geralmente negligenciado nos programas de desenvolvimento implantados até agora na região semi-árida. Somente com capacitação e organização será possível ao produtor consolidar o processo de integração, tanto horizontal quanto vertical, ganhando escala dentro na cadeia produtiva e logrando um maior controle do processo global e uma otimização dos resultados econômicos.
Fortes limitações das condições naturais da unidade produtiva e/ou de capital disponível afastarão boa parte dos caprino-ovinocultores de um processo de desenvolvimento dessa natureza. Alternativas de emprego para essa força de trabalho excedente poderiam ser, contudo, criadas com programas simultâneos de desenvolvimento de indústrias de transformação e de produção de bens e serviços não agrícolas nas vilas e cidades próximas aos centros produtores.
Do exposto depreende-se que um entendimento entre o setor público e as agroindústrias ou agrocomércios que tenham maior capacidade indutora do progresso tecnológico poderia servir de base para delinear uma estratégia de modernização da caprino-ovinocultura e/ou de outras atividades importantes no semi-árido. Esta estratégia se fundamentaria:
· na criação de um marco institucional que garantisse a transparência e simetria nas relações entre os produtores e os demais componentes da cadeia produtiva;
· no estabelecimento de um conjunto de estímulos para que as agroindústrias assumam também responsabilidade nas tarefas de capacitar e transferir tecnologias aos produtores;
· no estímulo a organização dos pequenos produtores, contemplando, inclusive, a constituição de agroindústrias cooperativas ou de sociedades mistas, onde os produtores tendam a ter maior participação no processo decisório
Essa seria, talvez, a forma mais indicada de tentar viabilizar a inserção econômica e social do produtor do semi-árido. Enquanto programas com esse enfoque, contemplando, de uma maneira integrada, os aspectos acima mencionados, não forem corretamente implantados, monitorados e avaliados, afirmar que o semi-árido é uma região inviável ou não competitiva não passa de um mero exercício de opinião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário