SECA NO SEMI-ÁRIDO, QUE SURPRESA!
Mais um período de estiagem prolongado atinge o semi-árido. “Que surpresa!... ninguém esperava!”. Quais são os planos delineados pelos órgãos “competentes” para o próximo período seco? Que ações de curto médio e longo prazos foram discutidas e definidas para prevenir ou reduzir o impacto da próxima estiagem (ou das próximas) sobre as populações rurais do semi-árido? Mais uma vez, parece que só teremos cestas básicas e carros-pipa. E depois, ao voltarem as chuvas? Adivinhem! ... Acertaram! A indefectível distribuição de sementes de milho e feijão. Como novidade, nos últimos anos surgiu apenas o programa de cisternas. mas este, só surtirá seu melhor efeito quando combinado com outras medidas de caráter não paliativo. Em algumas áreas, inclusive, a sua disseminação corre o risco de causar um efeito contrário. Ao invés de acabar com o carro-pipa, está é provocando o aumento de sua demanda. É só conversar com alguns motoristas de carros-pipa para confirmar essa tendência. “Antigamente, durante as secas, eu ia levar água numa comunidade a cada 15 dias, hoje, com todo mundo tendo sua cisterna, estou tendo de ir quase todo dia”, dizem os motoristas. O carro-pipa estende os seus domínios.
Os registros mostram que as secas são um fenômeno continuamente recorrente no semi-árido brasileiro e como tal, esses períodos deveriam ser considerados tanto pelos produtores, como pelas políticas públicas de apoio, como mais um dos muitos fatores de produção e assim, deixar de constituir um tema de permanentes ações emergenciais.
Mesmo o exercício de práticas adequadas de convivência com a seca não exclui a possibilidade de ocorrência de períodos cíclicos de estiagens mais prolongadas, embora possa propiciar uma acentuada redução nos seus efeitos. A convivência também com tais períodos impõe o estabelecimento de dispositivos técnicos e organizacionais eficientes e ágeis na previsão de sua ocorrência e na mobilização dos recursos de apoio, tanto os disponíveis, quanto os recursos adicionais que se fizerem necessários.
Um exemplo é a pecuária, atividade básica para sobrevivência do produtor das áreas mais vulneráveis às secas. Por se basear na forragem da caatinga, totalmente dependente das chuvas. medidas direcionadas à essa atividade são, portanto, essenciais a qualquer estratégia de prevenção e mitigação dos efeitos de estiagens no semi-árido. As medidas para o pecuarista típico do semi-árido, contudo, enfocam quase sempre “melhoramento genético” (reduzindo ainda mais a rusticidade dos rebanhos, da forma que é feito) ou inseminação artificial (bacana...é “tecnologia de ponta”), além das festivas feiras de animais. É incrível que não existam programas específicos de incentivo à formação de estoques forrageiros (feno, silagem, amonizados, palma, etc.), a prática mais importante a ser incorporada aos sistemas produtivos do semi-árido. Enquanto isso, o mercado nordestino é inundado com carne ovina uruguaia transportada de mais de 5 mil km de distância.
É preciso que reconheçamos a figura do secretário municipal da agricultura e das municipalidades, de uma maneira geral como elementos-chave de uma estratégia de prevenção dos efeitos das estiagens e de expressão das potencialidades do bioma caatinga. Infelizmente são figuras geralmente ignoradas inclusive nos programas de desenvolvimento regional, exceto, naturalmente, durante os períodos de distribuição de cestas básicas, transporte de água em carros-pipa e distribuição de sementes.
Políticas de governo deveriam buscar a disponibilização dos instrumentos técnicos e metodológicos necessários para que municipalidades e demais entidades públicas e privadas atuantes nas áreas sujeitas a estiagens possam, conjuntamente, conceber, planejar, operar e avaliar programas municipais ou microrregionais de desenvolvimento, fundamentados no fortalecimento interativo das atividades agrícolas e não agrícolas e na preservação da biodiversidade. Em 2002/2003 a Embrapa montou, em cinco estados, oficinas específicas para secretários municipais visando sua qualificação para montagem de planos de mitigação dos efeitos das estiagens. De pouco valeu o esforço. Em Pernambuco, das mais de 100 prefeituras convidadas estiveram presentes apenas 21. Se tivesse sido para discutir cestas básicas provavelmente teríamos tido “casa cheia”.
Os planos propostos nessas oficinas incluíam ações preventivas a serem desenvolvidas pelos próprios produtores, aos níveis de propriedade e de comunidades ou associações, a partir de sua capacitação prévia em práticas de gestão da propriedade em épocas de seca. A complementação se daria via criação de comitês gestores, municipais ou intermunicipais, a quem caberia a coordenação das ações de enfrentamento, prontamente mobilizáveis ao alerta de iminente ocorrência de uma estiagem mais severa. Tais comitês, de caráter permanente e coordenados por secretários municipais, teriam também a participação de representantes de instituições públicas e privadas e de membros das entidades representativas dos produtores. Configurado o quadro de estiagem. assumiriam seus poderes emergenciais claramente definidos, incluindo, além da coordenação de toda a ajuda interna e externa, ações como (1) o monitoramento e avaliação da intensidade e abrangência dos efeitos da estiagem na região (incorporando um sistema de previsão meteorológica com funções de alerta); (2) mapeamento, recuperação e uso coordenado da rede de poços e de reservatórios de água disponível na região; (3) montagem e coordenação de um sistema de circulação da informação entre os diversos atores nas áreas afetadas; (4) identificação e mobilização de áreas menos ou não vulneráveis à seca (áreas irrigadas são um bom exemplo) com potencial de apoio à área afetada, estabelecendo com as mesmas acordos e parcerias; (5) estabelecimento de garantias ao armazenamento estratégico e ao suprimento preferencial de subprodutos agrícolas ou agroindustriais estratégicos para a região afetada.
A organização de mapas das áreas afetadas constituiria um instrumento fundamental para definição da estratégia operacional de apoio e priorização das áreas a serem assistidas. Um mapa básico abrangeria aspectos como: áreas mais atingidas; possíveis áreas de pasto para uso emergencial; tradicionais e potenciais rotas dos rebanhos; pontos de elaboração de subprodutos agroindustriais; principais áreas de cultivo; pontos de água e pontos de apoio técnico-veterinário, entre outros. A intensidade e os efeitos da estiagem nas áreas mais afetadas seriam monitorados a partir de dados das agências especializadas, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e de checagens periódicas de campo, via rede de pluviômetros. As perdas e vendas de animais e produtos da lavoura, bem como números relativos à produção e compra de forragens e rações seriam contabilizados e avaliados no decorrer e no final do período crítico.
Para maior eficácia das medidas mencionadas, esse processo teria que ser apoiado por duas outras medidas, as quais exigiriam redobrados esforços dos comitês. Seriam elas: (1) o estabelecimento de medidas apropriadas para evitar o aviltamento dos preços dos produtos e exacerbação dos preços dos insumos, especialmente os utilizados na alimentação animal; (2) a busca pelo estabelecimento ou garantia de um crédito específico e adequado, durante o período de estiagem, voltado para a aquisição de forragens e rações para os animais, que possibilite ao produtor preservar um núcleo de matrizes que lhe permita, passado o período crítico, iniciar o processo de recuperação na atividade (enfoque da preservação do capital mínimo).
A manutenção dos preços de produtos e insumos a um nível aceitável pode ser efetivada por meio de subsídios aos canais de comercialização ou de intervenção direta do poder público, pela opção preferencial na compra de carne, leite e de outros produtos (para a merenda escolar, por exemplo).
Somente a conjunção harmônica dessas medidas, daria ao produtor do semi-árido a condição necessária para atravessar todo o período da estiagem com um mínimo possível de perdas, assegurando assim a reprodutibilidade de seus meios de produção e a possibilidade futura de, recuperando a sua condição econômico-financeira original, passar também a acumular meios de produção.
Basta de tanto improviso, basta de planos com visão meramente quadrienal, basta de tentativas suicidas de imposição de modelos exógenos. Basta de mesmices.
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