2 de mar. de 2012

CANAL DO SERTÃO, UMA NOVA DIMENSÃO


Clovis Guimarães Filho
Desde o início da década passada ouvimos falar no projeto do Canal do Sertão, um canal, de 1,2 bilião de reais, que sairia do lago de Sobradinho, em Casa Nova-BA, levando água para irrigar 150 mil hectares, até Serrita, em Pernambuco, beneficiando 17 municípios, com a produção de cana e frutas.Seriam 35 mil hectares na Bahia e 115 mil em Pernambuco. Um projeto foi rapidamente articulado pela agroindústria canavieira pernambucana com a Petrobrás e a japonesa Itochu Corporation para que toda a área produzisse cana-de-açúcar, com safras estimadas de 10 milhões de toneladas anuais e produção de etanol toda exportada para o Japão. A aparente paralisação do projeto é uma ótima oportunidade para reavaliá-lo sob, pelo menos, dois aspectos.
Sem considerar as restrições à cana-de-açúcar impostas pelo zoneamento agroecológico, o primeiro aspecto a ser reavaliado seria o risco da monocultura. A monocultura da cana, especificamente, traz desvantagens ambientais pela exaustão do solo e redução da biodiversidade e desvantagens sociais pela redução da mão-de-obra no campo, além do grande risco biológico de comprometimento de toda a cadeia produtiva pela ocorrência de uma determinada doença ou praga. Não deve ser esquecido, ainda, o risco econômico de concorrência com outras regiões de custos operacionais mais baixos pela não necessidade de irrigação.  
O segundo aspecto, a aparente injustiça com as populações locais que habitam essas áreas há décadas, sempre encarando a pobreza, as dificuldades com as secas recorrentes, sem ou com um apoio muito precário em educação, saúde, crédito, assistência técnica, e outros fatores essenciais de produção. Agora, que o governo resolve investir em obras realmente capazes de mudar a situação, chegam os grandes empresários, ocupam essas terras e alijam essas populações à uma condição de ator secundário do processo de mudança ao invés de objeto principal do projeto. Evidentemente, que este alijamento não é justo e precisa e pode ser repensado.

O instrumento que pode contribuir na solução do problema é a reformulação na concepção dos novos projetos públicos de irrigação, visando integrar as áreas irrigadas com as áreas de sequeiro. A categorização do produtor no acesso à água é um procedimento que permitirá multiplicar expressivamente as áreas beneficiadas pelos projetos públicos de irrigação, hoje limitadas a verdadeiros “ghetos” de uso intensivo de capital e tecnologia, rodeados de “favelas” de pobreza e de subdesenvolvimento. A idéia a ser analisada tem por base o estabelecimento de anéis diferenciados de oferta de água, permitindo incorporar áreas mais extensas e integrar as áreas irrigadas com as de sequeiro. Os três anéis se complementariam em termos de troca de benefícios (restos de culturas, matéria orgânica, oferta de mão-de-obra qualificada e serviços, acabamento de animais, entre outros). A água deve constituir, portanto, o principal elo de integração entre essas áreas ou espaços

 O Canal do Sertão oferece o palco perfeito para começar a implantar essa nova concepção. A integração das atividades agropecuárias exercidas nas áreas de sequeiro com as das áreas irrigadas já existe e representa um formidável potencial de benefícios econômicos e sociais ainda hoje subvalorizado nos projetos públicos e privados direcionados separadamente para essas duas áreas. Na prática, a integração se manifesta nos fluxos de insumos e serviços entre os dois espaços. O esterco caprino e ovino é o principal exemplo. Com demanda efetiva estimada acima de um milhão de toneladas anuais do produto, consolida-se uma forte dependência da fruticultura irrigada desse insumo largamente disponível na área de sequeiro.

 A idéia a ser analisada é a expansão da área beneficiada pelo Canal do Sertão incorporando áreas de sequeiro do chamado “território de concessão” em mais duas faixas (anéis) diferenciadas de acesso à água. Isso poderia resultar nas seguintes vantagens: 

1.     Aumento substancial da área física beneficiada do projeto. Poderiam ser incorporados entre 0,75 a 1,5 milhão hectares de sequeiro (cinco a dez hectares de sequeiro por cada hectare irrigado previsto no atual projeto);

2.     Incremento de, pelo menos, 15 a 30 mil produtores no total de beneficiários, fazendo justiça às populações locais e neutralizando as críticas ao projeto justamente pela exclusão que possa vir a fazer dessas populações no processo de sua organização produtiva.

3.     Redução substancial nos custos por hectare incorporado, já que não envolvem despesas com indenizações de terras e deslocamentos de famílias, considerando que esses produtores são os mesmos que já vivem na área.

4.     Fortalecimento dos empreendimentos irrigados na área do projeto, considerando o sequeiro como parceiro maior provedor de mão-de-obra diversificada e qualificada, de esterco, de serviços agrícolas (podas, pulverizações, polinizações, etc., de parcerias em empreendimentos agropecuários e turísticos (terminações de cordeiros e cabritos, condomínios de leite, enocapriturismo), bem como, fonte provedora para os habitantes dos anéis irrigados de alimentos nelas não produzidos.
O potencial econômico da agricultura irrigada é muito grande e sua relevância social representada pela geração de milhares de empregos permanentes é tremenda para ficar quase que totalmente dependente apenas da oferta de um par de produtos in natura a um mercado predominantemente externo e estacional. A região não é só agricultura irrigada. A caprino-ovinocultura é um exemplo disso e apresenta condições excepcionais de integrar de forma ambientalmente harmônica as duas áreas. Para se ter uma idéia, um recente estudo da Markestrat/Sebrae/Banco do Brasil, ainda não publicado, apontou uma movimentação financeira de quase 300 milhões de reais anuais da caprino-ovinocultura, apenas em cinco municípios do semiárido baiano (Remanso, Casa Nova, Juazeiro, Curaçá e Uauá). Isto pode ser considerado excepcional, se considerarmos tratar-se de uma atividade que vive quase toda na informalidade, inexistente do ponto de vista oficial.

A busca da dinamização da economia das populações do semiárido deve evitar a visão reducionista de desenvolvimento que enxerga uma oposição entre a “maximização da competitividade” do chamado agronegócio e a “diversificação das economias locais” propiciada pela agricultura familiar, como se fossem estratégias de desenvolvimento excludentes. Como resultado dessa visão caolha já temos, esdruxulamente, dois ministérios tentando, cada um a seu gosto, fazer a mesma coisa. O projeto Canal do Sertão pode representar um primeiro passo concreto em direção a uma nova forma de enxergar mais objetivamente as coisas do semiárido.

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