Clovis Guimarães Filho
Desde o início da década passada ouvimos falar no projeto do Canal do
Sertão, um canal, de 1,2 bilião de reais, que sairia do lago de Sobradinho, em
Casa Nova-BA, levando água para irrigar 150 mil hectares, até Serrita, em
Pernambuco, beneficiando 17 municípios, com a produção de cana e frutas.Seriam
35 mil hectares na Bahia e 115 mil em Pernambuco. Um projeto foi rapidamente articulado
pela agroindústria canavieira pernambucana com a Petrobrás e a japonesa Itochu
Corporation para que toda a área produzisse cana-de-açúcar, com safras
estimadas de 10 milhões de toneladas anuais e produção de etanol toda exportada
para o Japão. A aparente paralisação do projeto é uma ótima oportunidade para
reavaliá-lo sob, pelo menos, dois aspectos.
Sem considerar as restrições à cana-de-açúcar impostas pelo zoneamento
agroecológico, o primeiro aspecto a ser reavaliado seria o risco da monocultura.
A monocultura da cana,
especificamente, traz desvantagens ambientais pela exaustão do solo e redução
da biodiversidade e desvantagens sociais pela redução da mão-de-obra no campo,
além do grande risco biológico de comprometimento de toda a cadeia produtiva
pela ocorrência de uma determinada doença ou praga. Não deve ser esquecido,
ainda, o risco econômico de concorrência com outras regiões de custos
operacionais mais baixos pela não necessidade de irrigação.
O segundo aspecto, a
aparente injustiça com as populações locais que habitam essas áreas há décadas,
sempre encarando a pobreza, as dificuldades com as secas recorrentes, sem ou
com um apoio muito precário em educação, saúde, crédito, assistência técnica, e
outros fatores essenciais de produção. Agora, que o governo resolve investir em
obras realmente capazes de mudar a situação, chegam os grandes empresários,
ocupam essas terras e alijam essas populações à uma condição de ator secundário
do processo de mudança ao invés de objeto principal do projeto. Evidentemente,
que este alijamento não é justo e precisa e pode ser repensado.
O instrumento que pode
contribuir na solução do problema é a reformulação na concepção dos novos projetos
públicos de irrigação, visando integrar as áreas irrigadas com as áreas de
sequeiro. A categorização do produtor no acesso à água é um procedimento que
permitirá multiplicar expressivamente as áreas beneficiadas pelos projetos
públicos de irrigação, hoje limitadas a verdadeiros “ghetos” de uso intensivo
de capital e tecnologia, rodeados de “favelas” de pobreza e de
subdesenvolvimento. A idéia a ser analisada tem por base o estabelecimento de anéis
diferenciados de oferta de água, permitindo incorporar áreas mais extensas e
integrar as áreas irrigadas com as de sequeiro. Os três anéis se
complementariam em termos de troca de benefícios (restos de culturas, matéria
orgânica, oferta de mão-de-obra qualificada e serviços, acabamento de animais,
entre outros). A água deve constituir, portanto, o principal elo
de integração entre essas áreas ou espaços
1.
Aumento substancial da área
física beneficiada do projeto. Poderiam ser incorporados entre 0,75 a 1,5
milhão hectares de sequeiro (cinco a dez hectares de sequeiro por cada hectare
irrigado previsto no atual projeto);
2. Incremento
de, pelo menos, 15 a 30 mil produtores no total de beneficiários, fazendo
justiça às populações locais e neutralizando as críticas ao projeto justamente
pela exclusão que possa vir a fazer dessas populações no processo de sua
organização produtiva.
3. Redução
substancial nos custos por hectare incorporado, já que não envolvem despesas
com indenizações de terras e deslocamentos de famílias, considerando que esses
produtores são os mesmos que já vivem na área.
4. Fortalecimento
dos empreendimentos irrigados na área do projeto, considerando o sequeiro como
parceiro maior provedor de mão-de-obra diversificada e qualificada, de esterco,
de serviços agrícolas (podas, pulverizações, polinizações, etc., de parcerias
em empreendimentos agropecuários e turísticos (terminações de cordeiros e
cabritos, condomínios de leite, enocapriturismo), bem como, fonte provedora para
os habitantes dos anéis irrigados de alimentos nelas não produzidos.
O potencial econômico da agricultura
irrigada é muito grande e sua relevância social representada pela geração de
milhares de empregos permanentes é
tremenda para ficar quase que totalmente dependente apenas da oferta de um par
de produtos in natura a um mercado predominantemente
externo e estacional. A região não é só agricultura irrigada. A
caprino-ovinocultura é um exemplo disso e apresenta condições excepcionais de
integrar de forma ambientalmente harmônica as duas áreas. Para se ter uma
idéia, um recente estudo da Markestrat/Sebrae/Banco do Brasil, ainda não
publicado, apontou uma movimentação financeira de quase 300 milhões de reais
anuais da caprino-ovinocultura, apenas em cinco municípios do semiárido baiano
(Remanso, Casa Nova, Juazeiro, Curaçá e Uauá). Isto pode ser considerado
excepcional, se considerarmos tratar-se de uma atividade que vive quase toda na
informalidade, inexistente do ponto de vista oficial.
A busca da dinamização da economia das populações do semiárido deve evitar a visão reducionista de desenvolvimento que enxerga uma oposição entre a “maximização da competitividade” do chamado agronegócio e a “diversificação das economias locais” propiciada pela agricultura familiar, como se fossem estratégias de desenvolvimento excludentes. Como resultado dessa visão caolha já temos, esdruxulamente, dois ministérios tentando, cada um a seu gosto, fazer a mesma coisa. O projeto Canal do Sertão pode representar um primeiro passo concreto em direção a uma nova forma de enxergar mais objetivamente as coisas do semiárido.
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